Perder a mãe é um abismo. Minha mãe está morta desde maio de 2017. Quase cinco anos, mas foi ontem. E também foi há dois séculos. O luto não obedece o tempo comum, como sabe muito bem todo mundo que já passou pelo processo. E como bem mostra a literatura sobre o luto.
São quase cinco anos e a cada dia eu tenho mais medo de esquecer detalhes sobre ela. Eu fico desesperada para lembrar da voz dela. Das mãos dela, do cheiro. Da cor dos olhos. É tão cruel como isso vai desaparecendo… Ao mesmo tempo, sei que esse desaparecimento é inevitável, inelutável, não há nada que eu possa fazer, e talvez seja imperdoável. A cada dia o processo de vaporização das memórias fica mais intenso. Nem o fato de que eu penso nela todos os dias evita esse desaparecimento. Isso é uma maldade do luto. Mas talvez seja também uma espécie de sorte, talvez fosse insuportável lembrar demais. De todo modo, preciso lembrar.
Todos os dias é uma luta driblar a dor desse esquecimento, que em si é um segundo luto. Eu fico dando voltas e inventando meios de encher a vida de significados. Eu penso muito nisso, em significados. É uma bobagem, já nos ensinou o mestre Bourdieu, mas ele esqueceu de dizer o que devíamos colocar no lugar.
E nessa tentativa de não esquecer, pensei neste pequeno inventário de coisas que ao longo dos 46 anos em que fui filha me lembram da minha mãe.
É um inventário idiossincrático e muito pessoal, sim, como todas as listas do tipo, coisa e tal. E é um inventário, uma lista porque eu vivo de listas. Eu tenho a mania de listar o tempo todo, de inventariar e criar rol de tudo. É a minha maneira atípica de continuar.
Provavelmente não vai fazer muito sentido para quase ninguém. São fragmentos que me remetem à pessoa dela, mas talvez e principalmente, tenham a ver com o meu lugar de filha, com os sentimentos e experiências que tive num tempo em que não era órfã.
É uma mistura de coisas que me recordam dela e de coisas que recordam a mim mesma, lembram sentimentos ao longo da parte da vida em que eu ainda podia chamar alguém de mãe.
Além disso, é um registro deste momento, um rol do que me toca hoje. Talvez no ano que vem se eu pensar em algo assim, saia uma lista bem diferente, com outras coisas…
Então, primeiro a literatura, porque é a arte com a qual tenho mais familiaridade.
Os livros
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Éramos Seis – Maria José Dupre
Dona Dalva não era muito de ler. Mas quando ela falava de livros, sempre aparecia este. Ainda tenho aqui o velho exemplar que era dela. Acho que ela se identificava com a solidão da Dona Lola. Com o medo que a personagem tinha da família se esfacelar. Acho que ela se via nos sacrifícios de mãe da Dona Lola. Penso que muitas mães da mesma geração dela se identificavam, ou se identificam, com esse lugar de sofrimento e renúncia.
A Imortalidade – Milan Kundera. Eu li esse livro há muitos anos. Mas ele me vem a cabeça quando me lembro da minha trajetória de filha da mãe. Principalmente por uma cena em que uma personagem diz ou pensa (já não me lembro mais) que tem certeza que a mãe preferiria a irmã, e não a ela, caso fosse necessário fazer uma escolha como a de Sofia. E como eu li ainda muito jovem, numa época em que essas preocupações ainda faziam algum sentido, esse livro me marcou, pela resignada suposição que a filha tinha de que não era a preferida da mãe.
Por Favor Cuide da Mamãe – Shin Kyung-Sook A mãe deste livro lembra muito todas as mães. Como é que pode isso? Pois é, eu não sei, mas é o que penso quando me lembro dele. Aquela mãe que não faz o que os filhos imaginam, planejam. Que materializa o pesadelo dos filhos, o de que a mãe um dia simplesmente suma. Temor pela perda física, quando se é jovem, e mais tarde culpa e negligência de não cuidar de uma mãe idosa. Todo mundo em vários momentos tem algo mais legal para fazer que não seja cuidar da mamãe né? Saber dessa universalidade não evita a culpa, imagino. Eu só lamento não ter tido mais tempo pra cuidar.
Philomena: Uma mãe, seu filho e uma busca que durou cinquenta anos – Martin Sixsmith Esse livro me remete à criança que ainda procura pela mãe. O lugar da busca eterna e sufocante por uma mãe imaginária. Uma mãe que não existe, não é real. Mas que pode mobilizar uma vida inteira de procura. E a mãe que quando você encontra, já está morta. (No caso do livro não é bem isso. Mas ao mesmo tempo é. O filme é bom também.)
A Mulher Foge – David Grossman Esse livro me lembra minha mãe pois mostra os caminhos loucos que uma mãe é capaz de trilhar para não perder um filho. Além de ser uma leitura maravilhosa. Que livro!
Cem Anos de Solidão – Gabriel García Marquez Porque todas as mulheres latino-americanas estão ali, todas as mães, todas as filhas, avós, netas, tias, sobrinhas, madrastas, as loucas, as putas, as outras. E eu e minha mãe estamos também.
De Amor e Trevas – Amós Oz Porque Amós só conseguiu falar a respeito da morte da mãe depois dos 70 anos. Porque entender uma mãe, viva ou morta, é tarefa da vida toda. Porque não tem livro autobiográfico mais bonito que esse, porque minha mãe sempre vai ser a mais bonita.
Os Filmes
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O primeiro, no qual ainda estou presa e onde ficarei eternamente morando: O Labirinto do Fauno. Não existe possibilidade deste filme ter sido feito para outra pessoa que não para mim. Ofélia sou eu, ou melhor Ofélia mora dentro de mim desde sempre e não morreu com minha mãe nem morreu quando morre no filme. O Labirinto do Fauno é um filme profundamente triste, mas belíssimo. Vejam.
Outro filme que me lembra minha mãe: Sonata de Outono. Talvez seja desnecessário explicar a escolha desse filme . É quase, quase auto-evidente. Mas neste caso, a mãe de Sonata, a inesquecível Charlotte é só um fantasma de um tempo em que eu achava que era preciso ter conflitos, em que eu estava me afirmando como pessoa e acreditava que fazia sentido. E hoje, é engraçado como acho que quase nada da Charlotte tem a ver com a mãe que eu tive. Uma mãe que sempre esteve lá, quando Charlotte nunca pôde.
Mais um ainda. Que me lembra minha mãe, me lembra de mim como mãe, me lembra do sentido de mãe, de maternidade. O Quarto de Jack. (O livro é muito bom também). A delicadeza daquela mãe é tão comovente. É a mãe que eu imagino meio ideal, que eu queria ter, que eu queria acima de tudo ser. Mas a gente nunca consegue. E que eu vejo na minha própria mãe.
E um filme que ela amava Dança Comigo. E é engraçado ela gostar tanto desse filme, pois é a refilmagem de um filme anterior que eu amava muito, desde antes dela conhecer. O australiano Vem Dançar Comigo. Tudo perto da árvore, né.
As músicas
![]() Uma canção desnaturada |
![]() Oração para mãe menininha |
![]() Feira de mangaio |
![]() Menina de cabelos longos |
![]() Death with dignity |
![]() Dona Cila |
São músicas que seguem a mesma lógica (que não tem muita lógica, na verdade) ela gostava, ela ouvia muito, ou alguma música que me lembra o lugar de filha.
Uma Canção desnaturada – Chico Buarque – Essa é porque me senti assim vezes sem conta na vida.
Oração de Mãe Meninha – Dorival Caymmi (Maria Bethania & Gal Costa). Porque ela amava essa música e cantava e era bonito ouvir.
Feira de Mangaio – Clara Nunes. Lembro dos pés dela, descalços e em pontas, executando uma coreografia muito própria e engraçada.
Menina dos Cabelos Longos – Agepê. Essa também ela cantava. E me lembra das fotos que tanto gostava, dela novinha, de cabelos bem longos.
Lady Laura – Roberto Carlos às vezes eu queria ser novamente um menino.
Death with dignity – Sufjan Stevens porque essa letra, essa tristeza.
E a última, que ela nem conheceu, mas que é sobre ela, claro. Assim como é sobre uma quantidade imensa de mães da geração dela: Dona Cila – Maria Gadu.
Eu poderia falar de várias outras artes, isso não é sequer uma fração de tudo que me lembra dela e de mim. Não falei das novelas, não falei de seriados, não falei da costura, bordado, crochê, que tanto têm a ver. Das comidas que nunca mais terão o tempero dela. Na verdade toda arte me lembra dela, mas acho que deu pra entender. O que está aqui é material suficiente pra pensar nela durante um bom tempo. É assim também que ela vive em mim atualmente. É isso também que possibilita que a infelicidade não se instale, é nisso que eu encontro com ela, sempre que quero, sempre que posso.
Que saudade mãe. Que saudade de você, meu primeiro amor.
Pra facilitar montei essa biblioteca com essas indicações todas, se a alguém interressou alguma obra. Vejam os filmes aqui. Leiam os livros. E ouçam as músicas.
E Feliz dia das Mães!
© Nalua – Notas quase semanais de uma vida comezinha – Morros de Minas Gerais, outono, 2022 |